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O DIREITO DE PERMANECER CALADO DEVE ABRANGER APENAS COMPORTAMENTOS DE PASSIVIDADE DO ACUSADO – RECUSAR-SE A DEPOR, RECUSAR-SE A FORNECER MATERIAL GRÁFICO OU VOCAL – OU DEVE INCLUIR TAMBÉM O DIREITO DE IMPEDIR QUE O ESTADO OBTENHA UMA PROVA CUJA EXISTÊNCIA MATERIAL SEJA CONHECIDA, MAS QUE DEPENDA DA SUBMISSÃO DO ACUSADO – OBTENÇÃO DE SANGUE PARA EXAME PERICIAL?

O direito ao silêncio[1] consagrou-se, no Brasil, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, conforme se lê em seu art. 5.°, inciso LXIII, que o “preso será informado de seus direitos, entre os quais de permanecer calado, sendo assegurada a assistência da família e de advogado”.  

Todavia, salvo melhor juízo, o direito de permanecer calado não se restringe apenas a interpretação frígida e literal do preceito previsto no inciso LXIII do artigo 5.° da CF. Vejamos.

Impende destacar, que o direito ao silêncio surge como corolário do princípio latino nemo tenetur se detegere que, segundo se afirma, “ninguém é obrigado a se descobrir”[2] (ou seja, autoincriminar-se). No entanto, tal princípio não é sinônimo do direito ao silêncio; ao contrário, “(...) tal equivalência corresponde à adoção de conceito extremamente restrito do nemo tenetur se detegere. Atendendo a natureza de direito fundamental do nemo tenetur se detegere, o direito o silêncio apresenta-se como uma de suas diversas decorrências.”[3]

Em verdade, o nemo tenetur se detegere, dado o campo de sua amplitude, acaba por abranger o direito ao silêncio, não se restringindo a este último. Ou seja, tal preceito vai muito mais além do que o direito ao silêncio (comportamento passivo do acusado), para então atingir um direito mais amplo, qual seja, o direito de não se autoincriminar (inclui, aqui, o direito do acusado de impedir o Estado de obter prova invasiva, sem seu consentimento). Daí a assertiva doutrinaria de ser o direito ao silêncio umas das decorrências do princípio do nemo tenetur se detegere.

Aliás, tal princípio está expressamente previsto no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos adotado pela Assmbléia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966 (art. 14, n.°3, ‘g’). Ainda, em redação similar, a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, também prevê em seu artigo 8.°, n.° 2, ‘g’, que toda pessoa tem o “direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada.” Lembre-se que o Brasil ratificou os dois Pactos, através dos Decretos n.° 592/1992 e 678/1992, respectivamente. 

Vê-se, pois, que com a ratificação, e por conseqüência a incorporação ao ordenamento jurídico nacional, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o princípio do nemo tenetur se detegere, em virtude do artigo 5º, § 2º, da CF, possui o status de direito fundamental, vale dizer, possui a mais alta patente que uma norma pode ter, isto é, a de um princípio-garantia de hierarquia constitucional.[4]

O que se quer frisar até aqui, é que o direito ao silêncio ou permanecer calado — uma das maiores garantias do devido processo legal, cláusula constitucional (art. 5.°, LXIII, 1 parte) — ultrapassa os limites de sua própria redação, ou melhor, como reconhece a doutrina, deve ser interpretado como sendo o direito de não produzir prova contra si mesmo.

Por isso, não é razoável exigir-se a cooperação do acusado para obtenção de quaisquer provas incriminadoras (invasiva ou não). Inclusive, no Brasil, o STF tem proclamado a inadmissibilidade de compeli-lo a fornecer material gráfico[5], participar de reprodução simulada dos fatos[6] e também a fornecer os padrões vocais necessários a subsidiar prova pericial de confronto de voz em gravação de escuta telefônica[7]. Inclusive, não está obrigado a fornecer materiais para a realização de exames periciais que exigem intervenções corporais (exame de sangue, teste de alcoolemia, de DNA) e ao fornecimento de material escrito para realização de exame grafotécnico.

Por fim, sufragamos do entendimento de que o direito ao silêncio (i) estende-se aos indiciados ou acusados, até mesmo aqueles que em razão de suas declarações se coloque em risco de suportarem um processo criminal, como vítimas e testemunhas; (ii) incide em feitos de natureza penal ou extrapenal (processos administrativos, sindicâncias, ou qualquer outra forma de procedimento que possa redundar em punições disciplinares); (iii) e abrange tanto o comportamento passivo como ativo, impedindo que o Estado-Leviatã obtenha provas invasivas.



[1]  Que é o selo que garante o enfoque do interrogatório como meio de defesa e que assegura a liberdade de consciência do acusado. (GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 9. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais).
[2] QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo – o princípio Nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. Editora Saraiva, 2003, p. 04.
[3] QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo – o princípio Nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. Editora Saraiva, 2003, p. 69.
[4] QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo – o princípio Nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. Editora Saraiva, 2003, p. 80.
[5] HC 77.135-8. Rel. Ilmar Galvão, RT 760/542.
[6] HC 69.026-DF, rel. Celso de Mello, DJU 4.09.92, RTJ 142/855.
[7] HC 83.096-RJ, rel. Ellen Gracie, Informativo STF n.° 330.